É um cantar que nasceu pelos corredores da fronteira, e há muito tempo é assim, andejar e andejar, distâncias que são encurtadas pelas patas de fletes, e relatadas aqui pelo linguajar próprio, de campo.

Aqui vamos relatar o que vivenciamos, sentimos e até os sonhos que nos rodeiam, a cada passo do flete destino de quando em quando firmamos os arreios do pensamento e paramos n'alguma porteira divisora de razões, daí que brotam as discussões, cada um defende suas origens, peleiam por algum ideal, mas não podemos esquecer de que andamos sempre "Compondo Rastros".

Cada um tem seu passado que cruzou, deixou "rastros", por isso temos que firmar a rédea do destino e seguir firme na estrada que escolhemos, é por aí o caminho que estamos "Compondo Rastros".


"Sou herdeiro dos caminhos,
Do rastro que me condena
Canto aqui as minhas penas
Colhidas por tantos pagos
Aroma de terra e pasto
Adoçado de sentimento
Que se mesclou aos ventos
Pra compor os meus rastros"



Carlitos da Cunha de Quadros

Santa Maria - 24/07/2010

Tempo Chuvoso


Radio Fronteira Gaúcha

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sábado, 2 de abril de 2011

Romance de Estrada Longa



 

Não sei se lembro direito,
o jeito que era meu pago!
A distância planta ausências
pelas estradas compridas,
e o tempo gasta a memória
groseando o cerne da vida.

Nessa época os potrilhos

nasciam, trocavam pêlos,
cresciam e pelechavam,
com maçarocas nas crinas
pelos fundões das estâncias.

Os touros abriam covas,

apartavam as companheiras
formando xucros rodeios
pra viver nos rincões lindos
das invernadas antigas,
onde cimbravam os laços
na lida das campereadas;
e as mãos do vento passando
tiravam levianas plumas
arrancadas uma a uma
dos pendões dos macegais,
replantando na Querência
nas encostas e coxilhas,
Pastos, trevais e flexilhas
e o viço dos pajonais.

Era assim naquele tempo

a campanha do meu pago!
Até mesmo sem saber,
dormia a paz nos pelegos
fincada fundo na alma
e nos galpões dos campeiros.

As águas puras das sangas

brincavam nos pedregulhos,
e quando cheias, saíam
a campo fora do leito;
empurravam as capivaras
para os tranqüilos remansos
nas beiradas dos lagoões!

Nas recorridas de campos

tropeçavam buenos fletes
pelas tocas das mulitas
metidas rasas no chão,
mansamente refugiadas
na maciez dos seus ninhos,
no vigor dos pastiçais!

Ainda lembro, era assim

quando saí do meu pago!

Quando os tahãs levantavam

das cambotas das lagoas
para as alturas do céu,
e os casais de quero-quero
impeçavam a disfarçar
suas lindezas de ninhos
pelas saliências do chão,
a primavera chegava
trazendo flores e aromas,
vestindo com novas folhas
a nudez dos cinamomos.
A vida naquele tempo
se entretia encismada
nos encantos de si mesma!

À tardinha, os maçaricos,

qual ponta escura de lança,
sempre voltavam do sul,
as asas como panuelos
tremulando no espaço
entre o verde das coxilhas
e o sem fim do céu azul.

Nas noites de lua inteira

o sereno temperava
a voz macia das gaitas,
transpondo o melhor das almas
nas plumas dos dedos rudes,
sonorizando as janelas
pelos botões dos teclados;

as emoções retoçavam

na plangência das guitarras;
e as serenatas sobravam
para o tamanho dos ranchos,
expandindo as notas claras
bem além dos pára-peitos;
e entrando pelos portais
com flecos de estrela e lua,
embalavam os sonhos lindos
de tantas moças bonitas.

Passou tudo à meia-rédea

e quase nada sobrou!

A infância nesse tempo,

tinha mais tempo de ser!
Os guris tinham bodoques,
arapucas e mundéus
gados-de-osso ou sabugo
e o lombo dos petiços
para fazer escarcéus.

Era assim naquele tempo,

mas quase nada restou!

Ficou somente a memória

de um dia de primavera
quando saí do rincão.

O sereno ainda goteava

despencando sonolento
do longo beiral de zinco
na varanda do galpão!

Rondando o varal de charque,

do alto das timbauvas,
as calhandritas cantoras
melodiavam nas gargantas
com timbras de amanhecer,
a mais sublime beleza
que um canto já pode ter.
Distraído do silêncio,
um touro berrava ao longe
mergulhando nas canhadas!

As seriemas cantavam

repetindo as clarinadas
que desciam nas ladeiras
na direção dos banhados.

E no açude "das casas",

traíras soltavam botes
formando lentas maretas
como rodilhas se abrindo
no costado do juncal.

Um biguá abria as asas

como quem quer abraçar,
alguém que andava distante
e acabasse de chegar.

E a melena dos salsos

roçava a grama da taipa
lentamente ao balanço
de uma brisa de setembro!

Emalei poncho, encilhei

peguei cavalo de tiro
mais a mala-de-garupa
toquei a vida por diante
para soltar na estrada,
a buscar não sei o que
na incerteza das léguas
pelos volteados caminhos.

Segui o primeiro rumo

que o corredor apontou;
e o tramerio perfilado,
atilhos junto das cavas
como bigodes torcidos,
mudo me olhava passar;

com um cavalo de tiro,

poncho emalado nos tentos
mais a mala-de-garupa
e a esperança no olhar!

Passavam tropas, carretas,

andejos e domadores,
comitivas e tropilhas,
comparsas de esquiladores,
todos "terseando" esperanças
na ilusão dos corredores.

E a cobiça de horizonte

me distanciou prá mui longe
plantando sinais de fogo
junto de muitas aguadas.

E a cada pouso um recuerdo

se estirava na lonjura:
Apenas quem estradeia,
sabe o que vale um momento
quando as lembranças dão volta
enleadas na ternura
e nas razões que detêm,
tironeando o pensamento
pra o meigo rosto de alguém!

Mas tudo ficou prá trás

escondido na distância
disfarçada de horizonte
sem compreender infinitos!

Até que um dia o caminho

que abriga as poeiras cansadas,
confunde o rastro do pingo
e o coração dos andejos;
e mostra mil outros rumos
pra outros idem buscar,
com seus cavalos de tiro
poncho emalado nos tentos
mais a mala-de-garupa
e a esperança no olhar;
e quem sabe iguais a mim
irão minguando esperanças;
Co'a vida longe do pago
para a saudade voltar! 

Fonte:  Do livro Romance de estrada longa – poemas – Edição: Martins Livreiro – 1995
 *Foto: do Orkut de Eron Vaz Mattos botando um pealo, Na Estância Santa Cacilda.



Autor: Eron Vaz Mattos 
Olhos D'agua/ Bagé












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